quarta-feira, 2 de março de 2011

A morte bate a sua porta

Domingo de sol. Um dia tranqüilo como outro qualquer para Jorge Villeman.
Um jovem senhor de cinqüenta e um anos com hábitos que praticava diariamente, como regar suas plantas, varrer a casa e após estas tarefas, saborear um café forte e sem açúcar enquanto lia o jornal em sua aconchegante poltrona.
De certo que no domingo era tudo feito com mais calma, aproveitando o clima dominical que proporciona o sagrado descanso semanal.
Em seu jardim, enquanto borrifava água fresca em suas plantas, viu o céu azul, ouviu o canto dos pássaros e sorriu. Nada poderia ser melhor. Era solitário, mas estava habituado a viver desta forma e a eminente aposentadoria tornava o momento ainda mais sublime.
Apesar de uma aparente amargura, Jorge era um homem feliz. Seu aspecto sisudo era relacionado a frieza adquirida no seu trabalho. Era médico legista no IML.
Naquele domingo ensolarado, com uma sinfonia de pássaros alegres o café até parecia mais saboroso. A poltrona parecia adequar-se com simetria ao seu corpo. Quando abriu o jornal não havia tragédia nem mesmo nas páginas policiais. Respirou fundo e soltou uma exclamação de alegria. "Ah!", exclamou Jorge. Ateu convicto, não tinha divindade alguma a agradecer. Todos os seu méritos eram provenientes de seu esforço.
Foi então que ouviu uma batida na porta. Na porta dos fundos. Não havia forma de alguém entrar pelo fundo de seu pátio visto que sua residência era constituída de altos muros e seu estimado jardim localizava-se na parte de trás de sua casa. A frente era destinada praticamente a entrada do eremita moderno. Levantou-se e com receio foi ver do que tratava-se as pancadas na porta.
Deixou o café na mesa da sala, enrolou o jornal e colocou embaixo do braço. Ajeitou o roupão, passou a mão no rosto e fez um movimento circular com os ombros. Foi caminhado lentamente, pendendo a cabeça para o lado direito demonstrando claramente a desconfiança e o nervosismo.
Bateram novamente. Ele parou. Pensou em recuar mas seguiu, acompanhado de tremores leves e uma intensa vontade de urinar. Enfim, abriu a porta.
O susto foi grande ao ver um homem sério, alto, vestindo uma roupa preta larga. Um cabelo arrumado, aspecto pálido e nariz pontiagudo e proeminente, estendeu sua mão grande para saudar Jorge.
_Bom dia, Sr. Jorge.
_Aaah! - gritou Jorge, e deu uma passo para trás.
_Quem é o senhor? Como entrou aqui? Vou chamar a polícia!
_Fique a vontade meu amigo.
Jorge correu para o telefone e o homem ficou parado na porta, assistindo tudo com um leve sorriso de indiferença. Quando Jorge discou os números, o telefone estava mudo. Mexeu nos fios, bateu no aparelho. Nada, nenhum sinal. Pegou o celular. Fora de área. Nunca estava fora de área, pois a operadora que ele utilizava mantinha uma antena de transmissão a três quadras de sua casa.
Com o celular na mão, Jorge olhou lentamente para o extático homem na porta. O estranho lhe disse:
_Quanta deselegância, não deixastes nem eu me apresentar.
_Mas que diabos! Quem é o senhor?
_Sou a morte.
_Que piada é essa?
_Não é piada meu caro, sou eu, a morte. Não tenho denominação, nem preciso destas formalidades mundanas. Sou apenas um agente enviado para buscar os seres cuja hora soou.
_Mas como assim, eu estou ótimo! E além do mais, eu conheço bem a morte! Lido com ela todos os dias!
_Não, não excelentíssimo Sr. Jorge. Não conheces bem a morte. Prova disso é que nem me reconhecestes no momento em me viu na sua frente. E a título de correção, o senhor trabalha com corpos e não com a morte. Quem proporciona o desligamento da matéria e vislumbra este sutil acontecimento sou eu. O trabalho do senhor consiste em analisar as causas que levaram os indivíduos a cederem ao meu convite. Na verdade, é um convite outorgado.
_Mas isso é impossível!
_Nada é impossível.
_Vem a serviço de quem??
_Do Ser incriado que tudo criou.
_Eu não creio nisso!
_O problema é do senhor.
_Vou morrer quando for a minha hora, não agora.
_Estas certo, vais partir somente na sua hora. As oito e quarenta e sete da manhã. Antes disso não.
Jorge olhou quase que instantaneamente para o relógio.
_São oito e trinta e dois!
_Quinze minutos tens para aproveitar a vida. Depois disso, a morte é o que lhe convém.
_Acho que estou enlouquecendo. Não tem ninguém nessa porta.
Jorge fechou os olhos por alguns segundos e abriu logo em seguida, bem devagar. Olhou para a porta e não tinha ninguém.
_Sabia que só podia ser loucura minha...aaah! - gritou ele ao sentir o peso de uma mão em seu ombro. -Como veio parar atrás de mim?
_Sou incorpóreo homem ignorante. Não me desloco pelos mesmos meios que vocês.
_É sério tudo isso? Eu não vou morrer! Não posso morrer!
_É sério, meu caro. E que questionamento foi este? Não podes morrer? Vou avisar as hostes celestiais que temos um imortal trabalhando no IML. Meu amigo, minha paciência é curta e tem muita gente cuja hora chegou. Preciso levar todo mundo ainda hoje. Você é o segundo.
_Quem foi o primeiro?
_Tem coisas que não é dado ao homem saber.
_Nem se for meu último pedido?
_Que diferença vai fazer?
_Sei lá, uma última vontade.
_Oito e trinta e seis.
_É a morte ou o cuco? Precisa me narrar as horas?
_Não estou narrando as horas, estou lembrando que tens mais onze minutos. Trinta e sete. Dez agora.
_Não acredito! Tenho tanta coisa pra realizar, tanto a fazer! Não pode ser a minha hora...
_Não tens mais nada a fazer. Se não fizestes até agora, em cinqüenta e um anos, não fará agora em dez minutos. Ouço esta história todos os dias, não falha um.
_Que história?
_"Não é a minha hora". É a sua hora sim rapaz. E é melhor fazer a barba, tomar um banho e vestir-se bem. Não tem família nem amigos, apenas conhecidos. Providencie seu bem morrer porque caso contrário ficarás com este roupão ridículo estatelado neste museu que chamas de casa.
_Oras! Não fale assim deste local que construí com anos de trabalho!
_Coitado. Vai morrer de desgosto?
_E porque não?
_Porque não, sua causa de morte será outra.
_Qual será?
_Curioso?
_Sim.
_Já vais descobrir.
_Quando?
_Daqui a cinco minutos.
_Ai meu Deus!
_Oh! O ateu chamou por Deus!
_Força de expressão...
_Se antes vossa senhoria não gostava, agora muito menos. Dezesseis meses antes da sua sonhada aposentadoria ele manda eu vir te buscar.
_Pro inferno vocês!
_A gente não. Você eu não sei.
_Desgraçado este Deus que antes de eu realizar meu desejo ele manda me buscar!
_Desgraçado acho que é o senhor, que nem um grão de linhaça deu a um pássaro durante a vida.
_E isso faz diferença no fim?
Com um sorriso quase que demonstrando prazer de tão irônico, respondeu a morte:
_O senhor está a três minutos de descobrir...
_Cansei desse jogo!
_Se é jogo, já tem um perdedor.
_Como sabe?
_O seu passado desconheço mas do seu futuro tudo eu sei.
Jorge ficou em silêncio. Olhou ao seu redor e traçou rapidamente uma rota que não tivesse obstruções para sua fuga. Pulou a mesa que estava entre a morte e ele, desviou do sofá pegou a chave que estava ao lado do telefone e correu em direção a porta de saída. Eram três fechaduras. Olhou no relógio, constatou que faltava um minuto. A morte estendeu o braço sobre o ombro e lhe disse:
_Deixa que eu lhe ajudo.
Jorge teve um mal súbito e caiu, desfalecido. Despertou e levantou-se imediatamente. A porta estava aberta. A morte lhe abraçou e saiu com ele vagarosamente.
_Meu caro, vamos indo que no caminho eu lhe explico.
_Mas esta não parece minha rua...
_Muita coisa não é o que parece.
_Para onde estamos indo?
_Você vai encontrar o Wagner Martinez. Eu tenho que visitar um vizinho seu.
_Mas o Wagner morreu há três anos!
_Não encontra-se você melhor do que ele neste momento.
_Como assim, eu morri?
_Fique tranquilo, o Wagner também era ateu.
_E daí?
_Deus prefere os ateus. Adeus.
O corpo de Jorge ficou atrás deles, caído com um roupão ridículo no solo da solitária residência.