terça-feira, 15 de março de 2011

Os Invisíveis contra o Exército dos Negligentes

É com profunda tristeza que acompanhamos os acontecimentos no Japão. Invariavelmente assistimos aos noticiários recheados de números chocantes e notícias cada vez mais desagradáveis. Em um passado recente acompanhamos o desastre provocado por um tremor em alto mar que gerou um tsunami onde os continentes asiático e africano foram duramente castigados. Na ocasião, foram contabilizados cerca de 180.000 mortos e mais de 50.000 desaparecidos.

Outros abalos causaram um impacto tremendo na população mundial, como o terremoto na China e principalmente o tremor no miserável Haiti. Já não bastasse as mazelas vividas por aquele povo devido as condições econômicas do país, o cismo levou consigo cerca de 200.000 vidas. A comoção global fora inevitável diante de uma legião de órfãos e desabrigados praticamente desprovidos de esperança para recomeçarem.

Sem nos determos nos inúmeros cataclismos que aconteceram no mundo nos últimos tempos, vejamos os desastres que ocorreram no Brasil atualmente. Citemos como exemplo somente o desastre ocorrido no Vale do Itajaí em 2008, as enchentes no nordeste em 2010 e os deslizamentos na serra do Rio de Janeiro no começo de 2011. A quantidade de atingidos nestes três eventos foi tamanha que os donativos chegaram de todas as partes do país em quantidades sem precedentes.

Da mesma forma que o auxílio existiu para nossos conterrâneos, o povo brasileiro se mobilizou para ajudar os que padeceram em catástrofes ao redor do mundo. Caminhões e aeronaves carregavam toneladas de donativos para as vítimas e quase que em uníssono ouvia-se em coro o comentário de que "o brasileiro é caridoso". Até aonde vai tal afirmação? Seria justo fazermos um bom julgamento de um povo que acolhe aqueles que são acometidos por tragédias esporádicas, sem dúvida comoventes, mas ao mesmo tempo se blinda contra desgraças cotidianas?

Pois bem, devemos antes de mais nada nos colocar no lugar de semelhantes nossos que sofrem dia após dia com a fome, a pobreza e sobretudo a exclusão social. Se olharmos para cada cidade no Brasil encontraremos famílias inteiras em uma situação lastimável. Muitos destes casos são acompanhados de histórias comoventes de superação diante de uma vida castigada por duros golpes que deixam chagas eternas. As vezes estas chagas habitam os corpos desses indivíduos, mas certo é que sempre a alma carrega o maior resquício do que lhes afeta.

Nas metrópoles brasileiras vemos aglomerados de casebres sem segurança, saneamento, iluminação. Nenhuma condição que possa vir a caracterizar tais locais como habitáveis. E, no entanto, um sem número de pessoas vivem nestes lugares. Nas regiões norte e nordeste apresentam-se quadros que nós, que vivemos em locais um pouco mais privilegiados, não temos idéia e muito menos paramos para meditar a respeito. A região norte abriga em seu território um grande número de pessoas que vivem a margem do rio Amazonas, desprovidas de atendimento médico próximo, sem lazer da forma como conhecemos, sem escola que possua condições de fornecer as ferramentas necessárias ao ensino daqueles que farão o futuro desta nação.

Da mesma forma, na região norte existem escolas onde os estudantes não possuem cadeiras, nem mesas, não são abrigados por teto nem parede. Sem contar os agravantes climáticos que não permitem os trabalhadores do campo exercerem suas atividades de forma satisfatória. Os que vivem em regiões urbanas podem não ser tão atingidos pelos problemas supracitados. Todavia, acredito que se não sofremos da mesma forma não quer dizer que devemos esquecer os que padecem. As duas regiões mais pobres geram uma situação vexatória para um país dito emergente e líder de América Latina.

Ausentando-se do norte ou nordeste, analisemos nossos grandes centros urbanos. Quem vive em uma capital está cansado de conviver com semelhantes nossos que habitam comunidades miseráveis, onde a perspectiva de um futuro melhor passa longe. Vítimas de uma condição social menos favorecida, não são acometidos somente pela dificuldade financeira mas também sofrem devido a um pré conceito formado pelo simples fato de residirem em um local reconhecido por problemas comuns de áreas mais pobres como o tráfico e outros crimes.

Relatar os problemas e as dificuldades de camadas sociais inferiores no Brasil nos tomaria um tempo enorme e uma fartura de páginas que não cabem em nenhum lugar. Sendo assim, baseando-se nos exemplos supracitados e em todos os outros percalços que conhecemos e acometem os brasileiros, como podemos encontrar veracidade na afirmação de que o brasileiro é, realmente, caridoso? Auxiliar as pessoas que sofrem devido ao um incidente amplamente divulgado na mídia, por mais que tenha sido uma fatalidade terrível, é muito mais fácil por nos causar uma comoção praticamente outorgada. Mas se não vemos algo deprimente através dos relatos expostos nos jornais, simplesmente não ajudamos os que necessitam?

Devemos nos colocar no lugar de todos os que vivem no nordeste, no norte, nas favelas, nas regiões mais pobres do país. Nos colocar no lugar das crianças que remam quilômetros para obter ensino, ou que caminham debaixo de um sol escaldante para receberem ensinamentos sentados nos próprios calcanhares. Devemos pensar em todos aqueles que diante de um frio rigoroso não possuem agasalho suficiente para encararem o inverno. E a todos aqueles que a fome é cruel todos os dias, mas castiga e dói mais ainda quando no dia vinte e quatro de dezembro muitos confraternizam diante de uma mesa farta e eles comem o pouco doado por alguém que possui tão pouco quanto eles.

Estas pessoas que sofrem com todos estes pesares devem sentir-se invisíveis diante da avalanche de donativos que são entregues as vítimas de catástrofes naturais. Obviamente, devemos ajudar aqueles que de forma inesperada foram castigados por desastres naturais, mas ao mesmo tempo desgraças sociais machucam nosso povo todos os dias, sem que nos demos conta. O pior é que muitas vezes nos damos conta, mas negligenciamos a situação. Com isso, os invisíveis tem que lutar contra as dificuldades da vida e contra um exército de negligentes que enxerga o problema mas não se compadece a não ser da boca pra fora. A compaixão do coração é quase nula. Que todos aqueles que nada fazem para ajudar ao próximo lembrem-se da Terceira Lei de Newton. Se a lei não agir nesta vida, a pluralidade existencial fará que a reação ocorra, mais cedo ou mais tarde.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A morte bate a sua porta

Domingo de sol. Um dia tranqüilo como outro qualquer para Jorge Villeman.
Um jovem senhor de cinqüenta e um anos com hábitos que praticava diariamente, como regar suas plantas, varrer a casa e após estas tarefas, saborear um café forte e sem açúcar enquanto lia o jornal em sua aconchegante poltrona.
De certo que no domingo era tudo feito com mais calma, aproveitando o clima dominical que proporciona o sagrado descanso semanal.
Em seu jardim, enquanto borrifava água fresca em suas plantas, viu o céu azul, ouviu o canto dos pássaros e sorriu. Nada poderia ser melhor. Era solitário, mas estava habituado a viver desta forma e a eminente aposentadoria tornava o momento ainda mais sublime.
Apesar de uma aparente amargura, Jorge era um homem feliz. Seu aspecto sisudo era relacionado a frieza adquirida no seu trabalho. Era médico legista no IML.
Naquele domingo ensolarado, com uma sinfonia de pássaros alegres o café até parecia mais saboroso. A poltrona parecia adequar-se com simetria ao seu corpo. Quando abriu o jornal não havia tragédia nem mesmo nas páginas policiais. Respirou fundo e soltou uma exclamação de alegria. "Ah!", exclamou Jorge. Ateu convicto, não tinha divindade alguma a agradecer. Todos os seu méritos eram provenientes de seu esforço.
Foi então que ouviu uma batida na porta. Na porta dos fundos. Não havia forma de alguém entrar pelo fundo de seu pátio visto que sua residência era constituída de altos muros e seu estimado jardim localizava-se na parte de trás de sua casa. A frente era destinada praticamente a entrada do eremita moderno. Levantou-se e com receio foi ver do que tratava-se as pancadas na porta.
Deixou o café na mesa da sala, enrolou o jornal e colocou embaixo do braço. Ajeitou o roupão, passou a mão no rosto e fez um movimento circular com os ombros. Foi caminhado lentamente, pendendo a cabeça para o lado direito demonstrando claramente a desconfiança e o nervosismo.
Bateram novamente. Ele parou. Pensou em recuar mas seguiu, acompanhado de tremores leves e uma intensa vontade de urinar. Enfim, abriu a porta.
O susto foi grande ao ver um homem sério, alto, vestindo uma roupa preta larga. Um cabelo arrumado, aspecto pálido e nariz pontiagudo e proeminente, estendeu sua mão grande para saudar Jorge.
_Bom dia, Sr. Jorge.
_Aaah! - gritou Jorge, e deu uma passo para trás.
_Quem é o senhor? Como entrou aqui? Vou chamar a polícia!
_Fique a vontade meu amigo.
Jorge correu para o telefone e o homem ficou parado na porta, assistindo tudo com um leve sorriso de indiferença. Quando Jorge discou os números, o telefone estava mudo. Mexeu nos fios, bateu no aparelho. Nada, nenhum sinal. Pegou o celular. Fora de área. Nunca estava fora de área, pois a operadora que ele utilizava mantinha uma antena de transmissão a três quadras de sua casa.
Com o celular na mão, Jorge olhou lentamente para o extático homem na porta. O estranho lhe disse:
_Quanta deselegância, não deixastes nem eu me apresentar.
_Mas que diabos! Quem é o senhor?
_Sou a morte.
_Que piada é essa?
_Não é piada meu caro, sou eu, a morte. Não tenho denominação, nem preciso destas formalidades mundanas. Sou apenas um agente enviado para buscar os seres cuja hora soou.
_Mas como assim, eu estou ótimo! E além do mais, eu conheço bem a morte! Lido com ela todos os dias!
_Não, não excelentíssimo Sr. Jorge. Não conheces bem a morte. Prova disso é que nem me reconhecestes no momento em me viu na sua frente. E a título de correção, o senhor trabalha com corpos e não com a morte. Quem proporciona o desligamento da matéria e vislumbra este sutil acontecimento sou eu. O trabalho do senhor consiste em analisar as causas que levaram os indivíduos a cederem ao meu convite. Na verdade, é um convite outorgado.
_Mas isso é impossível!
_Nada é impossível.
_Vem a serviço de quem??
_Do Ser incriado que tudo criou.
_Eu não creio nisso!
_O problema é do senhor.
_Vou morrer quando for a minha hora, não agora.
_Estas certo, vais partir somente na sua hora. As oito e quarenta e sete da manhã. Antes disso não.
Jorge olhou quase que instantaneamente para o relógio.
_São oito e trinta e dois!
_Quinze minutos tens para aproveitar a vida. Depois disso, a morte é o que lhe convém.
_Acho que estou enlouquecendo. Não tem ninguém nessa porta.
Jorge fechou os olhos por alguns segundos e abriu logo em seguida, bem devagar. Olhou para a porta e não tinha ninguém.
_Sabia que só podia ser loucura minha...aaah! - gritou ele ao sentir o peso de uma mão em seu ombro. -Como veio parar atrás de mim?
_Sou incorpóreo homem ignorante. Não me desloco pelos mesmos meios que vocês.
_É sério tudo isso? Eu não vou morrer! Não posso morrer!
_É sério, meu caro. E que questionamento foi este? Não podes morrer? Vou avisar as hostes celestiais que temos um imortal trabalhando no IML. Meu amigo, minha paciência é curta e tem muita gente cuja hora chegou. Preciso levar todo mundo ainda hoje. Você é o segundo.
_Quem foi o primeiro?
_Tem coisas que não é dado ao homem saber.
_Nem se for meu último pedido?
_Que diferença vai fazer?
_Sei lá, uma última vontade.
_Oito e trinta e seis.
_É a morte ou o cuco? Precisa me narrar as horas?
_Não estou narrando as horas, estou lembrando que tens mais onze minutos. Trinta e sete. Dez agora.
_Não acredito! Tenho tanta coisa pra realizar, tanto a fazer! Não pode ser a minha hora...
_Não tens mais nada a fazer. Se não fizestes até agora, em cinqüenta e um anos, não fará agora em dez minutos. Ouço esta história todos os dias, não falha um.
_Que história?
_"Não é a minha hora". É a sua hora sim rapaz. E é melhor fazer a barba, tomar um banho e vestir-se bem. Não tem família nem amigos, apenas conhecidos. Providencie seu bem morrer porque caso contrário ficarás com este roupão ridículo estatelado neste museu que chamas de casa.
_Oras! Não fale assim deste local que construí com anos de trabalho!
_Coitado. Vai morrer de desgosto?
_E porque não?
_Porque não, sua causa de morte será outra.
_Qual será?
_Curioso?
_Sim.
_Já vais descobrir.
_Quando?
_Daqui a cinco minutos.
_Ai meu Deus!
_Oh! O ateu chamou por Deus!
_Força de expressão...
_Se antes vossa senhoria não gostava, agora muito menos. Dezesseis meses antes da sua sonhada aposentadoria ele manda eu vir te buscar.
_Pro inferno vocês!
_A gente não. Você eu não sei.
_Desgraçado este Deus que antes de eu realizar meu desejo ele manda me buscar!
_Desgraçado acho que é o senhor, que nem um grão de linhaça deu a um pássaro durante a vida.
_E isso faz diferença no fim?
Com um sorriso quase que demonstrando prazer de tão irônico, respondeu a morte:
_O senhor está a três minutos de descobrir...
_Cansei desse jogo!
_Se é jogo, já tem um perdedor.
_Como sabe?
_O seu passado desconheço mas do seu futuro tudo eu sei.
Jorge ficou em silêncio. Olhou ao seu redor e traçou rapidamente uma rota que não tivesse obstruções para sua fuga. Pulou a mesa que estava entre a morte e ele, desviou do sofá pegou a chave que estava ao lado do telefone e correu em direção a porta de saída. Eram três fechaduras. Olhou no relógio, constatou que faltava um minuto. A morte estendeu o braço sobre o ombro e lhe disse:
_Deixa que eu lhe ajudo.
Jorge teve um mal súbito e caiu, desfalecido. Despertou e levantou-se imediatamente. A porta estava aberta. A morte lhe abraçou e saiu com ele vagarosamente.
_Meu caro, vamos indo que no caminho eu lhe explico.
_Mas esta não parece minha rua...
_Muita coisa não é o que parece.
_Para onde estamos indo?
_Você vai encontrar o Wagner Martinez. Eu tenho que visitar um vizinho seu.
_Mas o Wagner morreu há três anos!
_Não encontra-se você melhor do que ele neste momento.
_Como assim, eu morri?
_Fique tranquilo, o Wagner também era ateu.
_E daí?
_Deus prefere os ateus. Adeus.
O corpo de Jorge ficou atrás deles, caído com um roupão ridículo no solo da solitária residência.